26.11.11

O sonho de Cris

Vibro quando minha sensibilidade vai mais fundo que os meus olhos no objeto que eles tocam. Sinto que uma coisa redonda desliza entre nós nesta tarde azul do Guarujá. O Atlântico manda um vento oceânico e sinuoso sobre as coisas que vivemos, nós três, nesta hora feita de açúcar e escândalo. As cortinas voam. Cris me conta seus sonhos e diz que o maior deles está muito longe dela. Digo-lhe que isso é bom — e mau — ao mesmo tempo. Mau, porque há distância entre a coisa e seu desejo. E bom, porque já tem consciência do caminho a percorrer. E a distância é sempre doce!
Sentir-se preso é o primeiro passo para se ver livre.
Peço-lhe que me conte um sonho erótico, e ela fica falando. Sonhou com uma casa enorme, muros altos. Cris tem lábios indecisos, não sabem se riem ou me beijam. Fala como se nada tivesse a dizer, numa espécie contida e gostosa do que não se deve esconder. Seus mamilos crescem tanto quando suspira, despontam como dois sóis durinhos, e os de Janaína respondem de forma igual. E algo até mais profundo que a minha sensibilidade começa a sobrevoar nossas cabeças escandalosas. Cadeiras são arrastadas, copos se desesperam, as águas ficam revoltas, meu vinho vai transbordar...
Como um Zaratustra adolescente eu lhe pergunto:
— Diga-me, Cris, qual a coisa mais importante da vida?
(Ela responde com palavras que fascinam.)
— Volte ao sonho — então lhe peço.
Sonhar é impreciso.
(...)
E o sonho de Cris me joga direto no peito aberto de Freud. Janaína lembra que sonho "é a realização disfarçada de um desejo inconsciente". Para Freud, o inconsciente é uma espécie de saco de lixo, onde nossas experiências reprimidas se acumulam — ou seja, a parte não escrita da nossa biografia. Não sabemos o que fazer com tais coisas, mas também não as jogamos de vez. O inconsciente, para Jung, repousa na biologia, e as energias do corpo são as mesmas que nos fazem sonhar. Chamo Carl Gustav para que me ajude na análise, mas o sonho agora de Cris é a prometida massagem nos pés. Arrumo um colchão na sala, cubro-o de amor e cor de rosas, e peço-lhe que fique da forma que quiser. Cris então se deita de costas, e se entrega ternamente à minha espantosa naturalidade. Vejo uma alma que suspira desenhada no lençol, e me transformo no Picasso da primeira fase, preparando uma gravura. Suas pernas são perfeitas, seu corpo é feito à mão. Beijo-lhe a testa, peço que relaxe, tento soltá-la mais um pouco de si mesma, toco em todos os seus lábios entreabertos.
Ponho Enya trazendo celtas, recomendo:
— Feche os olhos, e só os abra se Janaína te pedir.
Então, de repente, faz-se o silêncio mais completo e mais gostoso que é possível de ser feito, nessas horas encantadas em que as emoções se mostram todas à flor da nossa pele. Janaína deita-se ao seu lado, e sussurra docemente: "Pense numa flor, Cris, e respire como se amasse..."
O que veio depois não é preciso que eu conte — sou discreto.
Só digo que teve tudo a ver com amor.
Com amor e liberdade.

Mas agora que ambas se foram, Ticiano se abre para mim, na página certa. Bebo o restinho de licor que ficou no copo quebrado, chupo a fatia de laranja baiana dentro dele, e beijo o olhar que Janaína deixou no espelho da sala, pregado como se fosse um bilhete.
Só me resta chamar Baco:
— Traga-me, Deus, mais um copo de vinho!



Antes que vocês se espantem, e pensem que tudo isso aconteceu ontem, eu esclareço: essas coisas maravilhosas aconteceram no Guarujá, Rua Silvio Daige, em outubro de 2004, e estão descritas na página 257 do meu livro Solidão a Mil.